sábado, 31 de março de 2012

Eu sou Espártaco!

Esses dias estava discutindo com o meu namorado a estética dos recentes filmes que têm saído que tratam de temáticas relacionadas à História Antiga. Desde Troia tenho me decepcionado com esses filmes mirabolantes que prometem mais do que cumprem. Na verdade, eles trazem muito mais ação e efeitos especiais do que propriamente uma história fiel às fontes, mesmo que mitológicas.

Ao mesmo tempo, releituras, digamos, mais "realistas", mais sujas, de filmes clássicos têm aparecido, como foi o caso do recente "Fúria de Titãs", que também não me agradou muito e foi o mote da minha discussão doméstica. Meu namorado me acusa de gostar apenas de filmes "cult". Assumo que Blockbusters nem sempre fazem a minha cabeça e que raramente assisto um filme com o intento de apenas me divertir. Fico sempre observando os figurinos, os elementos estéticos, a verossimilhança... Coisa de historiador!

Entretanto, quando se trata de escolher filmes para passar em sala de aula acabo não escolhendo o que mais agrada. Os alunos devem adorar esses filmes cheios de ação e sangue, entretanto, como em meus primeiros anos na rede municipal só pegava 6.º e 7.º anos não me atrevia a passar filmes que não estivessem de acordo com a faixa etária. Esse ano estou pensando em fazer a experiência com o tal recente  "Fúria de Titãs" (confesso que só tenho em casa aquela versão antigona!) e ver o que acontece.

Há uns dois anos atrás em busca de um filme que pudesse ser mostrado para os meus pequenos gladiadores do 6.º ano, resolvi passar Spartacus. Sim, aquele de 1960, longuíssimo, antiquíssimo e talvez alguns dirão, chatíssimo... Sim, a versão do Stanley Kubrick, que traz o Kirk Douglas no auge da fama. Mas por que cargas d'água, dirão vocês, a escolha desse filme tão diferente dos que os alunos estão acostumados?



Exatamente pelo que já coloquei anteriormente. Os filmes recentes contêm muitas cenas inadequadas para a idade deles e eu resolvi mostrar exatamente uma estética diferente, que contivesse cenas de ação, romance e aventura, mas não cenas de sexo e efeitos mirabolantes.

Obviamente, não passei os 198 minutos (!) do filme.  Fiz uma seleção de algumas cenas nas quais os alunos pudessem identificar como alguém se tornava escravo em Roma, que também mulheres e crianças poderiam ser escravos, como um escravo tornava-se gladiador e principalmente, escolhi mostrar um escravo loiro e de olhos azuis para dissociar a ideia de escravidão da cor da pele. Expliquei que na Antiguidade a escravidão estava associada a outros fatores.

Passei um texto muito legal do livro Espártaco e seus gloriosos gladiadores, da Coleção "Mortos de Fama", que, se não mencionei em outros posts deveria ter mencionado, pois é sensacional. Aliás, deveria fazer um post tratando dessa coleção. Fica a promessa.



O texto fala do motivo de Espártaco ser considerado um "Morto de fama". Eis o trecho selecionado:

 "Ele não era rico, não foi rei, nem imperador, nem inventor, nem nada do tipo. Na real, Espártaco era apenas um escravo. Então por que é que 2 mil anos depois da sua morte seu nome inspirou filmes, livros e revoluções pelo mundo todo? Por que exatamente ele seria um morto de fama?"

Imagem extraída do livro "Espártaco e seus gloriosos gladiadores"

"O.k., ele até que fez umas coisas legais. Mas na verdade ele não só enfrentou os romanos. Espártaco e seu exército de escravos libertos VENCERAM os romanos. Imagine a vergonha das tropas de choque romanas ao serem derrotadas por um bando de escravos sujismundos. Mas o pior de tudo era um gladiador ter liderado um exército de escravos. Para os romanos, os gladiadores eram a coisa mais baixa que podia haver no mundo. 
Os historiadores romanos gostavam de escrever sobre “Grandes Homens”. Escreveram muito sobre imperadores e generais romanos, mas os fatos mais bizarros de suas histórias foram pra debaixo do tapete. Um ou outro escreveu sobre Espártaco e seu exército de escravos... provavelmente
tinham um pouco de vergonha da coisa toda. Salústio foi um dos historiadores que escreveu sobre Espártaco.
Ele era um adolescente quando Espártaco ainda lutava na arena. Para nossa felicidade, Salústio escreveu um
relato detalhado da guerra dos escravos contra os romanos. Para nossa infelicidade, sobrou pouca coisa do que ele escreveu.
 (...)
Salústio descreveu Espártaco como um homem “grande no corpo e na alma” — se você quer ser gladiador e líder de um exército, cá entre nós, é bom ter as duas coisas. Mas Salústio nunca descreveu seu rosto. Na verdade, ninguém conhecia a cara de Espártaco até 1960, quando saiu um filme sobre ele estrelado por um ator chamado Kirk Douglas. Pergunte a qualquer adulto como Espártaco parecia e eles vão dizer que ele tinha cabelo loiro espetado, olhos azuis marcantes e uma covinha bem no meio do queixo. Claro
que a versão de Hollywood não mostrou que ele devia ter cabelos escuros, o nariz quebrado e vários dentes a menos. Esse é o problema de Hollywood: eles faxinam a história para tudo parecer bonitinho."

Imagem extraída do livro "Espártaco e seus gloriosos gladiadores"

Bingo! Chegamos ao filme! E por meio desse texto pude reforçar com os alunos o conceito de fontes históricas, o trabalho do historiador para interpretar relatos muitas vezes esparsos e saber como as coisas talvez aconteceram e toda a construção em torno do filme e da figura de Espártaco como um herói e a escolha de um ator bonitão ajudou. Mesmo sendo um filme antigo, acho que consegui atingir o meu objetivo. Ah, e os alunos gostaram. Juro para vocês! A única dificuldade foi o fato da versão que eu peguei não ter áudio em português, só legendas. Nem todos os alunos de 6.º ano conseguem acompanhar, mas eu fui explicando tudo para eles e eles se mostraram muito interessados.

Espero que vocês tenham gostado também. Vale muito a pena trabalhar com filmes, sejam eles recentes ou antigos, desde que se mostrando para além do filme em si, a construção que se faz em torno do enredo, a escolha da temática, desde que se possa tirar algo dali. Eu gostei muito do resultado.