sábado, 1 de setembro de 2012

Os índios só existiram no Brasil até 1500?

Conversando com a minha irmã, que é professora de educação infantil nos questionávamos por que nas séries iniciais do ensino fundamental os povos indígenas eram sempre retratados no Dia do Índio de forma estereotipada e simplificadora, como se existisse uma essência, uma imagem que dissesse respeito a todos os povos indígenas brasileiros.
Essa visão é ainda hoje muito divulgada por produções culturais voltadas para o público infantil. Tipo, a música "Brincar de índio" da Xuxa.


Qual não foi minha surpresa ao preparar uma aula sobre os povos indígenas do Brasil e perceber que muitas das ideias sobre o índio que nos foram ensinadas nos primeiros anos da escola ainda permanece no "coração" e nas "mentes" das pessoas. Não é à toa que os pesquisadores de ensino de História são veementes em afirmar que as interpretações veiculadas nos nossos anos de escolarização nos acompanham por muitos anos.

Percebi isso ao ver o vídeo da TV Escola "Índios no Brasil - Quem são eles?". Ao serem perguntados sobre os índios no Brasil, as pessoas veiculam preconceitos ainda muito difundidos (embora o vídeo seja da década de 1990): "que vivem nas matas", "caçam", "pescam", "são preguiçosos", "são selvagens, quase bichos", "não existem mais", "o índio quando sai de sua tribo deixa de ser índio".

Para trabalhar com os meus alunos de 7.º resolvi partir desse vídeo e identificar as visões essencializadas mais comuns sobre os índios. Pedi que me dissessem antes da exibição do vídeo o que eles sabiam sobre os índios no Brasil. Muitas das visões dos alunos eram bem parecidas com as visões veiculadas no vídeo.



Um dos trechos mais interessantes é quando é perguntado a uma menina com claras feições indígenas se ela era índia e a resposta é negativa. Entretanto, quando é perguntado a ela o que ela é ela não sabe responder.
Fizemos um debate em torno das questões vistas no vídeo: Se um índio sai de sua tribo e vai viver na cidade, ele deixa de ser índio? Os povos indígenas desaparecerão no Brasil? Engraçado perceber como os estereótipos ainda têm força.

Trabalhei com os alunos o material de um suplemento da revista Recreio sobre algumas das etnias indígenas que  vivem no Brasil.

O material foi disponibilizado nesse blog: 
http://escola-zezito.blogspot.com.br/2009/04/19-de-abril-dia-do-indio.html

E com a música "Pindorama" do grupo Palavra Cantada. 



Uma das coisas que mais me incomoda na forma como os indígenas são tratados é que eles são mostrados com uma ingenuidade e incapacidade intrínsecas. Mesmo a explicação recorrente da substituição da mão-de-obra indígena pela africana se fez durante muitos anos baseada na inadaptabilidade (essa palavra existe?)  do indígena ao trabalho pesado nas lavouras de cana. Essa visão do indígena como um ser retrógrado, incapaz, que deve ser protegido ainda persiste nos dias de hoje, como mostram algumas visões presentes no vídeo. Os índios fazem parte da natureza morta e como as árvores necessitam ser salvos.



Lembro que um dos momentos mais marcantes da faculdade de História, foi quando tive a oportunidade de conhecer o livro do antropólogo francês Pierre Clastres, "A sociedade contra o Estado". Na coletânea de textos, Clastres (um anarquista, segundo meu professor de História da América I) afirma que a sociedade civil pode prescindir da figura do Estado e para demonstrar a sua tese analisa a experiência de povos indígenas da América do Sul. Para o autor, as sociedades indígenas não seriam menos evoluídas por não contarem com a presença de um Estado centralizado. O autor vai ainda mais longe ao afirmar que as sociedades indígenas possuem mecanismos culturais que impedem o aparecimento de figuras de chefias com poder concentrado. Nesse sentido, tais sociedades não estariam em um "processo de evolução" que favoreceria o aparecimento de um estado, mas estariam quase conscientemente "contra" o aparecimento desse Estado, uma vez que ele não apresentaria uma evolução e sim o contrário.

http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/ObraSinopse/10654/A-sociedade-contra-o-Estado.aspx

Assim, ao pensar em conteúdos que poderiam simplificar essa visão para os alunos e mostrar que os indígenas não necessariamente estão em uma escala evolutiva inferior, me lembrei de um projeto desenvolvido pelo professor de História do meu irmão (que hoje tem 22 anos) sobre a cosmologia do povo indígena Kalapalo.

O projeto foi desenvolvido pelo professor César Lemos e apresentado na I Feira de Ciências da Fundação
Planetário e da 2ª Coordenadoria Geral de Educação no ano de 2003. O trabalho mostrou por meio do estudo da visão de mundo dos indígenas Kalapalo que os índios podem sim, criar ciência.

Segundo o aluno  Douglas Galeno do Vale, na época com 13 anos, monitor da exposição ocorrida em 2003 e orgulho da mana, “Há tribos que fazem ciência ao investigar, por exemplo, que tipo de árvore (casca) se adequa à construção de uma canoa. Eles investigam e criam a tecnologia ao produzir a embarcação”. Outra aluna participante do projeto afirma: “Foi bacana perceber que ciência não é só tecnologia. Há várias maneiras de se fazer ciência e muitos temas que inspiram uma investigação científica”.

Maquete do projeto "O céu dos índios Kalapalo"

A experiência completa do trabalho sobre os índios Kalapalo, bem como os outros projetos que foram destaque da mostra pode ser acessada aqui: http://portalmultirio.rio.rj.gov.br/portal/_download/revista17.pdf

O importante, é encontrar jeitos de mostrar para os alunos que os indígenas são capazes de produzir conhecimentos válidos. Eles são capazes de pensar, de refletir e de agir sobre o mundo que os cerca. Eles não são apenas um dos elementos exóticos integrantes da nossa nacionalidade. Eles não estão apenas no passado e as recentes questões em torno das demarcações das terras indígenas são uma prova de que os índios são mais que capazes de agir e lutar pelo que é seu por direito. Afinal, eles além de indígenas, também são brasileiros.