sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Não vou me adaptar

2016 está chegando ao fim. Junto com o jingle natalino chiclete de uma famosa loja varejista que todo mundo conhece e da Simone cantando o batido verso que nos interroga com o dedo em riste "E o que você fez?", vêm as reflexões sobre o ano que passou.

Em 2016 eu voltei a ler livros por prazer, aliás, retomei o hábito da leitura que sempre foi o um dos meus maiores prazeres, escrevi meu texto de qualificação do doutorado, voltei a ver Gilmore Girls (uma das minhas séries preferidas de todos os tempos), comecei a me exercitar regularmente e a comer melhor. Tudo isso só foi possível porque, depois de sete anos na educação pública me afastei da sala de aula e cheguei a pensar em desistir da profissão. Aliás, ainda não estou bem certa ainda do que vou fazer quanto a isso.

29 anos, retorno de Saturno, crise dos 30 ou o que quiserem chamar. Passei a sentir um imenso desconforto toda vez que entrava em uma sala de aula. Ou mesmo antes de entrar. Passava mal de vomitar, mesmo. Pressão baixava, ficava tonta. Crises de choro sem fim. Passei a questionar a importância de estar ali, a significância do que estava ensinando. Me achei péssima professora. Passei a achar que o problema era comigo, com a História. Cheguei a achar que não servia para a profissão, que estava no lugar errado, na hora errada. Questionei minhas escolhas, afinal, como alguém aos 17 anos pode fazer uma escolha para a vida toda? Pensei em fazer outras faculdades, artesanato, abrir uma hamburgueria gourmet (com que dinheiro?), um canal no Youtube. "Rompi tratados. Traí os ritos". Assustada com a contingência de perder a sanidade que me restava, achei que estava na hora de dar um tempo. E estava mesmo.

Confesso que os tempos não são os melhores para a profissão docente e principalmente para quem concebe a educação como um ato político e reflexivo. Mas não vou tratar disso. Não agora.

Duas coisas ontem no mundo facebookiano me fizeram pensar sobre minha relação com a educação. e de repente tudo fez sentido, ou não. A primeira delas foi uma postagem aparentemente inocente na qual eu fui marcada logo de manhã pelo meu marido. A postagem trazia a imagem de uma sala de aula e a seguinte questão:

Quem era você? Uma classe arrumada em fileiras contendo os estereótipos mais clichês de alunos. Estão todos ali: o dorminhoco, o malandro, as fofoqueiras, o casalzinho apaixonado, o que não sai do celular, o gótico, o que vive no mundo da lua, os populares, os nerds...



A segunda postagem foi uma carta muito bonita que a Elika Takimoto escreveu para a filha dela Nara, quando foi sua professora, em 2014. Só esclarecendo, a Elika é professora de Física do CEFET aqui no Rio de Janeiro. A carta foi escrita em um momento em que a Elika estava em uma "crise existencial sem tamanho" com a profissão. Palavras dela.

Uma frase da carta foi o catalisador da reação que se processou em mim:

"luto por um CEFET em que os melhores alunos não sejam aqueles que se adaptam à escola e sim aqueles que fazem a escola se reinventar para melhor servi-los"

Na prática isso é muito difícil de fazer porque eu sempre fui a aluna número 1 da imagem. Eu sempre me adaptei muito bem à escola. Talvez lá no fundo eu não entenda os alunos que não se adaptam, embora tente com todas as forças. Eu sempre respeitei meus professores, mesmo quando não concordava com o que eles diziam. Se eu sempre fui uma aluna no padrão, como eu conseguiria ser uma professora fora do padrão? Ainda não sei.

Só sei que não quero mais ensinar os alunos informações inúteis que eles inevitavelmente vão esquecer. Não quero fazer parecer que o Enem é o dia do juízo final. Ou sentir que estou falando sozinha para as paredes sobre assuntos que só a mim interessam. Ou aplicar provas tradicionais. Aliás, corrigir prova é a pior parte de ser professora para mim. Odeio com todas as minhas forças. Não quero ensinar, quero ajudar a aprender. Quero aprender junto.

Pela primeira vez na vida me peguei não cabendo mais nas roupas que eu cabia. E o refrão martelando na minha cabeça "Não vou me adaptar". 

Não é fácil, não é bonito não se adaptar. É você contra o mundo. É preciso ter humildade para catar os cacos e persistir no que acredita. É preciso ouvir o outro, mesmo discordando. Não sei ainda se consigo.

Finalizo com um trecho do livro que li mais recentemente. Nele a personagem principal Jean Louise, volta para sua cidade natal Maycomb, um pequeno condado no sul dos Estados Unidos, depois de um longo período morando em Nova York. Percebe que por ali pouco ou nada mudou e se depara com o racismo escancarado nas relações cotidianas da pequena cidade. Jean Louise quer virar as costas para Maycomb e ir embora para sempre, mas acha que não se sentirá em casa em nenhum outro lugar do mundo. Não pactua com o racismo dos habitantes do lugar, mas não tem coragem de enfrentá-los dia após dia pelo que acredita. A frase abaixo é dita pelo tio de Jean Louise, que tentar lhe explicar o que está acontecendo com ela. A tomada de consciência faz parte do processo de travessia e para que Jean Louise se torne senhora de suas convicções ela tem que percorrer um duro caminho. 

"A ilha de cada homem (...) o vigia de cada um é sua própria consciência. Não existe essa coisa de consciência coletiva." LEE, Harper. Vá, coloque um vigia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. p. 239.

A escola nesse momento é minha Maycomb. 





sábado, 2 de janeiro de 2016

Parodiando a História

Antes de começar a minha vida profissional fiz estágio docente em uma escola espetacular, à qual tive o privilégio de retornar ano passado como professora. O que faz essa escola ser tão espetacular são os alunos. Eles topam muita coisa. Eles são empolgados e esse é o meu combustível. Uma professora incrível dessa escola nos meus tempos de estágio me disse que o segredo da docência é deixar os alunos fazerem as coisas. É jogar para eles. Isso era muito difícil de aceitar para mim. Eu estava começando na profissão, ainda nos curso superior, ambiente no qual é reputado como bom professor aquele que é capaz de dar uma "boa aula". Boa aula aqui entendida quase sempre como uma boa palestra. Em resumo, o bom professor é aquele que tem a capacidade de transmitir o que sabe por meio da palavra e somente por meio dela.

Passados alguns anos como professora, hoje eu entendo que uma "boa aula" principalmente no ensino básico (penso que no superior também, mas nesse eu tenho menos experiência) pressupõe muito mais que uma boa oratória e um excelente domínio do chamado conteúdo. Escutei certa vez uma conversa na qual um colega dizia para o estagiário que estava montando sua primeira aula: "Você pode chegar e dizer um monte de coisas lá na frente da turma, mas isso não é uma aula".  

Para uma aula ser uma aula ela tem que ter começo, meio e fim. É necessário pensar atividades adequadas a cada faixa etária com a qual se está trabalhando. É necessário didatizar o conteúdo, de forma que a aula se torne algo dinâmico. Algumas atividades vão dar certo e outras não. O trabalho de professor também pressupõe aceitar que não dá para acertar sempre. Estamos lidando com pessoas e pessoas são imprevisíveis. Isso torna tudo melhor, mas é difícil pensar que o meu trabalho não  depende só de mim. 

Seria mais simples e seguro chegar com uma aula expositiva preparada e despejar o conteúdo em cima dos alunos sem margens ou brechas para a participação deles. Entretanto, tenho entendido cada vez mais que as melhores aulas são aquelas na qual os alunos podem se expressar e tenho buscado isso. 

A princípio os alunos vão odiar. É muito mais fácil um professor que "faz o seu trabalho" e eles podem ficar "na deles". É muito mais fácil um professor que tasca a matéria no quadro e pede pra copiar.  

Há uns meses atrás uma colega de twitter postou a seguinte frase: 


Isso parece ser simples de compreender, mas não é. Claro que ninguém está dizendo que qualquer um pode ser professor ou que não é preciso preparo para tal. É justamente o contrário. Mas quanto mais se entende que todo o preparo do mundo não garantem uma boa aula se o "professor" pretende continuar falando como se estivesse sozinho, melhor a aula fica. Quanto menos se pretende ensinar, no sentido professoral da coisa, melhor é o diálogo. Com isso, a gente perde a vergonha de se expor e fica mais à vontade diante da turma.



Não se trata de virar um professor do tipo showman, (no meu caso showoman, se isso existir)  como os muitos de cursinho que a gente vê por aí, se esse não for o estilo da pessoa. Também não se trata de achar que todas as aulas têm que agradar a todos os alunos. Como eu disse, em muitos momentos os alunos vão odiar as proposições e vão querer apenas um professor que os deixe em paz.  Trata-se de descobrir o que se sabe fazer de melhor e usar isso na sala de aula.

Eu gosto de cantar. Não sei se canto bem ou mal, mas não tenho vergonha de fazer isso em público. Esse ano resolvi convidar os alunos a fazer da sala de aula um espaço descontraído onde pudéssemos cantar algumas vezes. A proposta era que eles elaborassem paródias sobre a matéria que estávamos estudando, no caso as revoltas regenciais. Em troca, cantei uma paródia que tinha feito com meus alunos de outra escola sobre o período regencial. 

As paródias ficaram ótimas e renderam boas risadas. Mesmo os alunos tímidos participaram. Foi um dos pontos altos do ano. Pena que não guardei nenhuma delas para postar aqui.

Abaixo: a letra da paródia que fiz com os alunos da Rede Municipal sobre o período regencial em cima da letra da música Price Tag, da cantora Jessie J.




Período Regencial

Período Regencial, muitas revoltas, muito caos
D. Pedro foi embora e deixou o seu filho seguir o legado imperial
Ele era só uma criança, não poderia entrar na dança
Três regentes foram lá para o país governar
Fazer então a paz reinar

Todo mundo olhou para o Norte
Todo mundo olho para o Sul
O povo se agitou
Rebeliões organizou

Maranhão a Balaiada, ada ada
Grão-Pará a Cabanagem, agem, agem
No Sul a Farroupilha,
Na Bahia os Malês

Fome e tristeza, não não não não
Presidentes de província, não não não não
O povo não aguenta mais
Vai querer se separar